Cartas Póstumas de Capitu - por educando Lucas Gines
Confira a produção incrível do educando Lucas Gines baseada na história de Dom Casmurro. Educadora Garone.
CARTAS PÓSTUMAS DE CAPITU
Sai da igreja completamente desequilibrada, sem entender direito o que havia acontecido. Ezequiel segurava minha mão direita enquanto voltávamos e me perguntava com uma voz doce por que eu chorava tanto, mas ele não era capaz de entender o que eu passava naquele momento, claro que também foi duro para ele ouvir do seu próprio pai, que aquele homem que o criou não era quem achava. Mas de alguma forma, ainda tinha dentro de mim que a separação não podia acontecer, não por medo de me lincharem, mas por medo de como Ezequiel ficaria.
Demoramos a voltar por culpa minha, tinha que refletir, fui à praça que ficava na frente da igreja, caminhando com medo de tudo que minha vida poderia se tornar ouço dois pretos com roupas surradas cantarolar, invertendo a ordem dos versos da canção:
“Vai, vai, vai, vai, não vou
Que eu não sou ninguém de ir em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor”
Os versos me tocaram de uma forma diferente, logo que ouvi aquilo parei de caminhar e me virei pacientemente, perguntei pelo resto da música e sua inspiração, ele disse que sentia medo de tocar em público, eu não entendia o porquê e continuei a insistir que tocassem, eles cantaram baixinho para mim, fui surpreendida com os versos:
“Coitado do homem que cai no canto de Ossanha, traidor”
Perguntei então àqueles pretos, quem era Ossanha e eles pacientemente me responderam que esta era uma divindade africana que com as suas plantas e seu canto, raptou alguma outra divindade que não sou capaz de recordar nome, a fez passar por tantas coisas, que perdeu sua liberdade. Depois de me contarem a história com magníficos detalhes, pedi que cantassem aquela música novamente e dessa vez tocaram sua versão completa, e a cada nota que o violão soava eu me lembrava de um momento diferente de minha história.
Ouvi-los cantarem, me levou diretamente ao momento em que um preto passava por Matacavalos e vendia sua cocada cantando e Bentinho me levava uma para me acalmar da ideia de perdê-lo, já que iria ao seminário. Lembrei-me de cada momento de minha infância, de como amava dançar brincando com Bento, de eu imitar o sacristão e ele o padre e perder a noção do tempo com ele.
Recordei-me do dia de nosso primeiro beijo, olhava para aqueles cachos que os céus tinham dado a ele, do que senti dentro de mim quando ele fingia que não sabia como pentear meu cabelo cometendo sempre o mesmo erro que o obrigava a voltar do início, de pensar dentro de mim o que era necessário pra ele entender que eu o queria. Lembrei-me de como olhava ele, com aqueles coletes, era um pão! Sentia de novo minha cabeça tombar, como se fosse a primeira vez, olhar os olhos assustados de Bentinho querendo tranquilizá-los e de sentir nossos lábios se encostando magicamente, era como unir o certo e o errado, aproximar o conflito da paz, de certa forma, a coisa certa a se fazer, senão fizesse agora, talvez se não tivesse feito o que fiz naquele dia, ele nunca percebesse o quanto era apaixonada por ele.
Me lembrei de como era sonhar com mil e umas coisas, de sonhar com anjos vindo falar comigo e com o Bento, de perguntar nossos nomes, eu era muito sonhadora, criativa e principalmente liberta.
Me lembrei de cada lágrima caiu, e de cada pensamento que tive quando o vi partindo para o seminário. Me aproximar de Dona Glória e começar a enxergar nela uma mãe, não por interesse, mas por admiração. Passar as tardes conversando com ela sobre quaisquer assuntos e me ensinar a como coser, como ser mulher trouxeram a nós uma proximidade de mãe e filha, não é a toa que veio adoecer quando Ezequiel e eu partimos a Europa.
Relembrar de tudo também trouxe a mim memórias ruins, infelizmente aquilo me fez pensar como meu casamento com o Bento acabava com a liberdade que possuía antes, não era mais a mesma Capitu que escrevera “Bento Capitolina” nos muros, que mostrava os braços sem medo, ou que perdia o tempo com Bentinho, e ali, ouvi dentro de mim que nossa separação era a coisa certa a se fazer, mesmo que isso doesse mais do que qualquer coisa.
Eu agradeci e Ezequiel imitou, agradeceu aqueles senhores pela bela canção e assim caminhamos para Praia da Glória.
Chegando lá, pedi que Ezequiel fosse brincar com Capituzinha, que logo depois se mudou, confirmei a Bento nossa separação e que estava nas ordens dele em relação a isso. Uma tristeza tão grande me consumiu para o resto do tempo que passei com ele, não sabia como, nem quando, mas quando me dei conta, eu e Ezequiel estávamos na Suíça.
Morávamos em um apartamento pequeno, mas confortável que ficava em cima de um mercado da rua, lá sempre quis passar para Ezequiel as melhores lembranças que tinha do seu pai. Ezequiel cresceu e foi se tornando o homenzinho mais bonito que eu tinha já visto, e quanto mais o tempo passava, mais com Bento ele parecia, era o anjo que tinha sonhado na minha adolescência. Herdou de nós dois as nossas melhores características, do pai, os cachos e a estrutura do corpo, de mim, a disposição no rosto e meus olhos. Foi nesse momento que comecei a escrever cartas a ele, as pessoas pediam fotos, chegávamos a tirar, mas quando me lembrava da música e antes de enviar, tirava-as do envelope que já estava nas mãos do carteiro. Ezequiel continuou a imitir tudo e todos, quando começou a conhecer as profissões, falava sobre ser ator, mas acabou virando arqueólogo, sua verdadeira paixão. Nunca vou esquecer o último dia em que o levei para a escola, acordei atrasada, sem disposição, me aprontei rapidamente, levei-o para lá, e voltei.
Quando cheguei, fui me arrumar de uma vez para começar o dia, me sentei na penteadeira que ficava próxima a cama, me arrumei. Quando fiquei pronta, peguei meu espelho de mão, me olhei pela última vez e mais uma vez lembrei daquela canção e não resisti ao cansaço, deitei minha cabeça, olhei para Bento com os seus cachos e seu colete, e dessa vez, Dona Glória, toda vestida de branco veio nos trazer de volta a realidade. Ela se sentou na minha cama e tranquilamente me chamou, eu, inocentemente não percebi o que havia acontecido e ela pacientemente me explicou, me chamou, disse que já estava na hora, que minha mãe já estava preparando meu prato favorito e que José Dias nos esperava no trem e ali, de uma vez por todas, fui.
Dona Glória, muito querida aqui e José Dias, foram me dando doses homeopáticas de tudo que não sabia e eles, acreditavam em mim fielmente. O reencontro com todos foi incrível, longos abraços e a emoção do reencontro marcaram o dia, até Escobar estava aqui. Para minha surpresa, anos depois, Bento veio a escrever o livro, acompanhei-o na estação de trem, na escrita do livro, ele por sua vez, colocava página por página na mesa e eu ia lendo sem deixar claro a minha existência perceptível, claro, tudo na versão dele, sem nada na minha visão.
Lendo o livro, percebi que tudo que Bento disse depende de interpretações muito bem escondidas entre detalhes do relacionamento entre nós, e se hoje estou aqui falando, é porque me deram voz o suficiente para isso. Recebi definições que nunca chegaram a mim, “olhos de ressaca”, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, minha concepção como mulher que perpetuaria na história foi feita por dois dos homens que mais admiro, Bento e José Dias.
Bentinho sabe quanto chorei no funeral de Escobar, mas não sabe o quanto confiei as minhas emoções ao travesseiro que secava minhas lágrimas de saudades dele. Bento sabe que sua mãe foi adoecer logo depois que parti, mas não que sentiu uma filha, não carnal, ir embora. Bento viu provas concretas do meu investimento com Escobar, ninguém tira dez libras do nada.
Devo confessar que fiquei surpresa descobrindo algumas coisas sobre meu ex-marido, agora finada, mas devo agradecer a ele por nunca ferir nossa privacidade como fez com as prostitutas que chama de “caprichosas” e com o próprio no seminário, afinal ficou claro pelas desejadas consequências.
Portanto, não, leitor, se quer saber de minhas palavras, diferentemente de Bento, nunca me deitei com outro homem que não fosse ele, não por medo ou culpa de abandonar meu ex-marido no que eu considerava o pior momento. Mas uma coisa era igual a nós, nunca mais conseguimos “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”, ele por que começou a viver apenas das suas vagas memórias, eu, por que nunca mais vi “estrela aparecer na manhã de um novo amor”, pelo menos não com os “olhos de ressaca”, nem com os de “cigana oblíqua e dissimulada”, a partir de nossa separação, minha existência, sempre foi vista com outros olhos...
-Capitu de Albuquerque Pádua, em vida
Eterna, Capitu